Jorge Samek, diretor da Itaipu Binacional: “Estamos vivendo a maior transformação já vista na história da energia” ( foto: Claudio Gatti)
Carros movidos a dejetos de animais ou a baterias feitas com sal de cozinha. Eletricidade gerada pelo sol ou pelos ventos. Aviões que são reabastecidos em tomadas residenciais. Tudo isso já é realidade no Brasil. Conheça alguns projetos que estão reescrevendo a história do setor, com investimentos de R$ 30 bilhões previstos para este ano.
Você provavelmente deve se lembrar de uma das mais marcantes cenas do filme “De Volta para o Futuro”, produzido em 1985 por Steven Spielberg, em que o cientista grisalho Doutor Brown, protagonizado pelo ator Christopher Lloyd, reabastece com lixo residencial o DeLorean, um carro que viaja no tempo. Curiosamente, a ficção imaginou que o combustível alternativo, que incluía cascas de banana, restos de comida e embalagens, seria uma realidade três décadas depois, em 2015. Hoje, com algumas pequenas adaptações, pode-se dizer que Spielberg acertou.
Ainda não é possível, é verdade, abastecer o tanque de combustíveis com lixo, mas a prática de extrair energia daquilo que antes ia para o esgoto ou aterros sanitários é uma realidade cada vez mais presente, e simboliza uma era promissora para a indústria energética no Brasil e no mundo. Não faltam exemplos. Na segunda maior hidrelétrica do planeta, a Itaipu Binacional, 40 dos 300 carros da frota já são movidos a biometano, um gás retirado dos dejetos de galinhas e porcos de fazendas e granjas do interior do Paraná.
Até o final do ano que vem, metade da frota será movida a energia limpa. Além de retirar da natureza aquilo que poderia contaminar a água de rios e mananciais, a conversão de fezes em combustível reduz em 70% a emissão de dióxido de carbono na atmosfera em relação aos combustíveis derivados do petróleo. “Estamos vivendo a maior transformação já vista na história da energia”, afirma o executivo Jorge Samek, que comanda a parte brasileira de Itaipu, usina que também pertence ao Paraguai. “Mais cedo do que todos possam imaginar, nossos carros e nossa eletricidade serão gerados por fontes antes impensáveis.”
A ofensiva verde de Itaipu não se limita ao biometano. A partir da primeira semana de novembro, todo esgoto produzido pela empresa será processado em um grande biodigestor, que produzirá gases para geração de energia elétrica para consumo próprio. Até a poda da grama, que gera uma tonelada de resíduos todos os dias, será processada no mesmo tanque. A energia excedente poderá ser vendida para a Companhia Paranaense de Energia (Copel). “Itaipu se tornou o maior laboratório de novas energias no País”, diz Samek.
Por que, afinal, a gigantesca hidrelétrica, com 20 megaturbinas em operação, que gera 17% de toda eletricidade consumida no País e praticamente toda energia do Paraguai, precisa buscar energia no lixo? Não precisa. A proposta é desenvolver novas tecnologias para diversificar a matriz energética do País, ainda hoje extremamente dependente da força das águas e do bom humor de São Pedro. A diversificação é urgente. Prova disso foi o anúncio conjunto, na terça-feira 30, da presidente Dilma Rousseff e de seu colega americano Barack Obama.
Os dois mandatários se comprometeram a reduzir significativamente a participação dos combustíveis fósseis na geração de eletricidade até 2030. No lado brasileiro, além de zerar o desmatamento ilegal e reflorestar uma área de 12 milhões de hectares, o equivalente à metade do Estado de São Paulo, a promessa é de aumentar a fatia das energias renováveis, com geração a partir de eólicas, solares e biocombustíveis, que deverá ficar entre 28% e 33% da matriz. Em 2012, o Brasil já contabilizava 28,6% da eletricidade gerada como originária de fontes limpas, mas, desde então, tem sujado a matriz energética diante da necessidade de colocar as termelétricas em máxima operação, em decorrência da queda no volume de chuvas nos últimos anos.
Ao largo das promessas e da propaganda política, há uma multibilionária indústria de energia limpa se movimentando desde já. Pelos cálculos da consultoria Bloomberg New Energy Finance, dos US$ 300 bilhões que deverão ser investidos em geração de energia no Brasil, até 2040, US$ 267 bilhões serão direcionados a projetos de energia renovável. Para este ano, a expectativa é de que sejam investidos, a despeito da crise, cerca de R$ 30 bilhões, acima dos R$ 24 bilhões do ano passado. De olho nessa dinheirama, empresas de diversos setores traçam suas diretrizes para não ficarem de fora dessa nova ordem energética.
“O cenário de geração de energia no Brasil necessita de transformação”, afirma Reinaldo Garcia, presidente da GE para a América Latina. “O modelo de geração centralizada, com alta concentração hidrelétrica, que funcionou muito bem nos últimos 50 anos, começa a ter seus desafios.” A gigante industrial americana, dona de um faturamento de US$ 148,6 bilhões, no ano passado, e cujos tentáculos se estendem por setores diversificados como o aeroespacial, energia e saúde, acredita que, em um futuro próximo, cidadãos e empresas estarão produzindo sua própria energia, localmente.
Trata-se de um conceito batizado de geração distribuída. A GE está desenvolvendo turbinas cada vez mais compactas, derivadas do setor aéreo, que podem ser instaladas, por exemplo, no subsolo de edifícios. Pequenas e silenciosas, elas garantem autonomia e segurança energética a indústrias e condomínios corporativos, além de funcionarem com combustíveis limpos. “Não faz sentido gerar energia no Paraná e levar até o Nordeste”, afirma John Ingham, diretor da GE, responsável pelas áreas de água e energia. “Hoje é possível para qualquer empresa gerar sua própria eletricidade e, ainda, jogar o excedente de volta para a rede.”
Atualmente, existem 35 dessas miniturbinas em operação no Brasil, além de outras 75 de tamanho tradicional. Esse número é inferior somente ao encontrado nos Estados Unidos. Em 2010, foi inaugurada, em Juiz de Fora (MG), a primeira usina termelétrica do mundo a operar com um biocombustível, no caso o etanol de cana-de-açúcar. A simplicidade e a eficiência das turbinas, em comparação com outros meios de geração de energia, como motores a combustão, é que as tornam tão atrativas e seguras – não por acaso, são o propulsor preferido do setor de aviação. “Elas podem funcionar com praticamente qualquer combustível”, afirma Ingham.
SOBE? A alemã ThyssenKrupp, por sua vez, encontrou uma maneira de produzir energia em algo tão comum no cotidiano das pessoas, que, muita vezes, nem se percebe que se trata de um dos meios de transporte mais utilizados no mundo: os elevadores. Cálculos da empresa apontam que os prédios, tanto os residenciais como os comerciais, são os maiores consumidores de energia do mundo, respondendo por cerca de 40% do total – mais até do que a indústria. Já os elevadores são os grandes gastões dos edifícios, absorvendo até 10% da eletricidade produzida.
A questão é que o sobe e desce e, principalmente, as frenagens, produzem calor, que pode ser transformado em energia, que volta para a rede. Um exemplo da novidade é o One World Trade Center, prédio erguido no local onde ficavam as Torres Gêmeas, em Nova York. Seus 73 elevadores geram energia suficiente para alimentar todo o sistema de iluminação do prédio. A novidade chegará ao Brasil neste ano. “A modernização dos elevadores terá um grande impacto no consumo de energia mundial”, afirma Andreas Schierenbeck, presidente do conselho executivo da ThyssenKrupp Elevator, divisão de elevadores do grupo alemão, que também atua nos setores siderúrgico e de componentes industriais.
O conceito de gerar energia localmente, em vez de confiar em obras faraônicas, como a da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que se arrasta há quatro décadas e já consumiu, desde 2010, mais de R$ 30 bilhões, está por trás, também, do crescimento dos projetos de energia solar a eólica. A Brasil Solair, empresa criada pelo empresário Nelson Côrtes da Silveira, fundador da Brasil Ecodiesel, por exemplo, montou uma autêntica fazenda solar em pleno sertão baiano. Dois condomínios populares do programa Minha Casa Minha Vida, em Juazeiro, às margens do Rio São Francisco, foram escolhidos para receber 9.144 painéis fotovoltaicos em seus telhados, gerando mais de 2,1 megawatts-hora (MWh), o suficiente para abastecer 3,6 mil domicílios por ano.
“Precisamos desenvolver aquilo que chamo de engenharia social, já que basta olhar para o mapa do Brasil para ver que onde mais bate sol, há mais pobreza”, afirma Silveira. Com a chamada microgeração distribuída de energia solar, as famílias que antes dependiam essencialmente do Bolsa Família hoje recebem na conta-corrente mensalmente um valor correspondente à energia jogada na rede elétrica, que tem variado de R$ 60 a R$ 300, de acordo com a cotação do MWh no mercado livre. Engana-se quem pensa que se trata de um projeto isolado.
“Até 2040, as economias em desenvolvimento terão gasto US$ 1 trilhão em sistemas fotovoltaicos pequenos, em muitos casos levando eletricidade pela primeira vez a vilarejos remotos”, afirma Jenny Chase, analista-chefe da Bloomberg New Energy Finance. O horizonte da energia solar no País se tornou ainda mais promissor com a produção local dos painéis, que antes eram importados da China. A Brasil Solair já produz as placas em João Pessoa, na Paraíba, com o objetivo de popularizar a modalidade por aqui. A empresa até lançou um modelo de negócio inédito, em que o interessado em instalar os painéis pode alugar o sistema a custo zero, que demandaria um investimento de R$ 20 mil a R$ 150 mil, se fosse comprado.
A locação é paga com parte da receita da venda da energia ao sistema. Ou seja, além de reduzir drasticamente ou até zerar a conta de luz, o locatário pode ainda faturar com o sol que bate no telhado. “Não há como dar errado”, afirma o presidente da Brasil Solair. “Um painel solar no Brasil, por implicações geográficas, gera o dobro da energia de um painel na Alemanha”. A microgeração distribuída abrirá caminho para o avanço, por exemplo, dos automóveis elétricos, atualmente não incentivado pelo governo brasileiro. O argumento é que o aumento da frota movida a eletricidade poderia causar um colapso no frágil sistema energético.
“Isso é balela, já que se 100% dos carros vendidos anualmente no País fossem elétricos, aumentaria apenas 3% da carga no sistema”, diz Samek, de Itaipu. “O governo, querendo ou não, será atropelado pelos carros elétricos, que tomarão conta do mercado nos próximos anos.” Internamente, Samek tenta dar o exemplo. Juntamente com aqueles 40 veículos movidos a biometano de sua frota, outros 80 já funcionam 100% a eletricidade. Detalhe: os carros foram produzidos nos laboratórios da empresa, o que faz de Itaipu a maior montadora de carros elétricos do País e parceira de marcas como Renault, Nissan, Fiat, Scania e Volvo.
Outra peculiaridade desses carros, ônibus e caminhões, além da nacionalidade brasileira, é a tecnologia própria das baterias, produzidas a partir do sódio. Trata-se do mesmo material utilizado como sal de cozinha, três vezes mais leve que as de chumbo e mais adequada ao clima dos trópicos, por não perder sua capacidade de armazenamento com o calor. O sucesso desse sistema já foi comprovado até em aviões. No dia 23 de junho, Itaipu promoveu o voo inaugural do primeiro avião 100% elétrico do País, fabricado em parceria com a ACS Aviation, de São José dos Campos (SP).
O armazenamento da energia é, até o momento, a grande barreira para a popularização dos veículos elétricos. Não por acaso, o bilionário sul-africano Elon Musk, fundador da Tesla, fabricante de carros elétricos que vem revolucionando o setor, está investindo US$ 1,4 bilhão na construção da maior fábrica de bateria do mundo, no Estado de Nevada, nos Estados Unidos. Seus planos, no entanto, vão além dos automóveis. Musk anunciou que vai vender sistemas de armazenamento energético para residências e empresas. Serão oferecidos dois tipos de bateria. A mais barata, com capacidade para até 10 kWh, sairá por US$ 3,5 mil. É possível usar até cinco baterias juntas. Uma típica casa americana, com ar condicionado, consome 30 kWh por dia, em média.
O sistema pode ser instalado em uma parede e tem diversas opções de cores, para combinar com a decoração. Já o mercado corporativo poderá usufruir de um equipamento mais parrudo, do tamanho de um refrigerador, com capacidade para até 100 kWh. O preço não foi divulgado. Segundo os cálculos de Musk, são necessários 2 bilhões desses sistemas para mudar a matriz energética mundial, inteiramente, para fontes renováveis armazenadas em baterias. Esse é exatamente o número da frota global de carros e caminhões. Seja como for, a julgar pelo ritmo de investimentos das empresas no desenvolvimento de novas fontes de energia para eletricidade ou mobilidade, um mundo sem fumaça e sem petróleo chegará ao dia-a-dia de todos muito antes dos planos de Dilma e Obama. A corrida já começou.
Fonte: Isto É dinheiro – Por: Hugo Cilo e Rodrigo Caetano