26 de agosto, 2016
O frio não espantou quem decidiu aparecer naquela manhã de sábado na Praça do Samba, em Perus (bairro na periferia da zona norte paulistana), para pintar muros e bancos, reformar brinquedos e construir mobiliário. A turma não fazia parte da prefeitura, e sim da própria comunidade. No centro da ação, um trio de jovens arquitetas se misturava aos outros, agachadas no chão, cobertas de tinta, com ferramentas na mão. Renata Strengerowski, Inês Fernandes e Andrea Sender formam o coletivo Acupuntura Urbana, que vem ocupando e transformando espaços públicos em diversos bairros de São Paulo a partir de desejos das pessoas que vivem em seu entorno.
O próprio nome já explica o grupo: em uma analogia com a terapia oriental – que ativa pontos do corpo com agulhas para fazer a energia circular, melhorando a saúde do paciente –, o Acupuntura Urbana ativa espaços públicos para torná-los mais saudáveis do ponto de vista urbano.
São três frentes de atuação:
1. Mapeamento afetivo: o grupo faz oficinas para ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre seu bairro e, juntos, constroem um mapa local baseado nessa relação. As aulas também são oferecidas em faculdades, situação na qual os estudantes refletem sobre o bairro onde a instituição está inserida;
2. Ocupativação: baseada em dois pilares, o de melhorar a estética e o uso de determinado espaço público. O coletivo faz reuniões para ouvir diversos grupos e interesses inseridos na comunidade e, a partir disso, realizam atividades no espaço e testam novos usos em vários horários;
3. Transformação urbana: assim como o feito em Perus, é um processo focado no médio prazo para transformar determinado espaço público. Ele engloba diagnóstico local, co-criação do projeto de ativação a partir do sonhos das pessoas da comunidade, elaboração de uma lista de materiais e captação de recursos. Depois disso é feito um mutirão para colocar as ideias em prática, seguido de um trabalho de acompanhamento dos resultados e seus impactos.
As ações são feitas principalmente a partir da filosofia Elos, que parte de sonhos para criar soluções, e do método Design Thinking, uma forma criativa de solucionar problemas. As duas metodologias têm as pessoas como protagonistas no centro do processo. “Nunca chegamos para mapear problemas e culpados, ou para ver o que falta. A gente sempre vai para conhecer o que já tem, qual é a história das pessoas”, explica Renata, arquiteta idealizadora do Acupuntura Urbana. Pensar nas transformações a partir do sonho de cada um é muito importante para o coletivo, que percebeu na tentativa e no erro que é muito mais eficaz mobilizar as pessoas para realizar seus sonhos do que para resolver problemas.
Ouça nossa conversa com a Renata e saiba mais sobre o começo, as primeiras experiências e as metodologias do Acupuntura Urbana no podcast abaixo:
A forma de abordar as comunidades para melhorar os espaços é possivelmente a parte mais delicada de todo o processo, segundo Renata. No início, o coletivo tinha mais pessoas, que desistiram justamente por conta desse desafio. “Nossa primeira ação foi no Campo Limpo [periferia na zona sul de São Paulo] com o pessoal da luta popular por moradia, mas chegamos numa abordagem de ‘viemos ajudar vocês e ensinar como faz’”, conta Renata. “A gente foi enquadrado pelas lideranças, que questionaram nossa posição política e o que a gente achava que ia ensinar ali. Levamos uns tapas na cara, mas entendemos no fim que vamos lá muito mais para aprender com eles do que para ensinar alguma coisa.” Esse foi o entendimento de quem ficou, mas não de quem decidiu sair do grupo, que esperava ser acolhido na sua tentativa de ajudar.
Renata conta que foi legal entender que essa abordagem não estava adequada, mas ficou a pergunta: como se aproximar de outros jeitos? Segundo ela, a descrença na mudança por parte das pessoas é uma das principais dificuldades no início de cada trabalho. “Toda comunidade fala: ‘Você pode ter feito no mundo inteiro, mas aqui não vai dar certo’. Essa descrença está vinculada à visão da escassez. A gente é educado a reclamar e achar culpados em vez de ver o que já tem e potencializar isso. Virar essa chavinha é um dos grandes desafios para que as pessoas acreditem na transformação”, afirma. Tudo muda, no entanto, quando chega a parte da mão na massa e os primeiros resultados começam a aparecer. É nesse momento que mais pessoas passam a participar.
Colocar as ideias na rua, um princípio que faz o coletivo ser o que é, foi fundamental para que as próprias arquitetas afinassem sua forma de trabalhar. Foi na prática que entenderam que não adiantava fazer reuniões nas comunidades durante muito tempo, pois depois era difícil definir um escopo realista de trabalho. Elas também compreenderam que, embora seja interessante usar recursos já presentes na comunidade para melhorar os espaços, é necessário trazer mais qualidade técnica de execução – caso contrário, um mobiliário pode quebrar e impactar negativamente na relação das pessoas com o espaço.
“Às vezes a gente fica planejando demais, pensando demais, querendo fazer o melhor projeto da vida e isso nunca vai acontecer”, analisa Renata. “Esse ‘não-medo’ de errar nos trouxe para a rua e fez testar o que funciona ou não, o que a gente gosta e o que não gosta.” Assim, o sucesso é fruto da experiência, que é consequência da prática. Quanto mais as pessoas veem os resultados do projeto e as transformações acontecendo, mais a ideia de espalha e mais escala o coletivo consegue ganhar.
Foi com essa visibilidade que o Acupuntura Urbana conseguiu fazer funcionar seu modelo de negócios atual, o patrocínio de iniciativas a partir de empresas. Segundo a arquiteta, cada vez mais existem negócios que entendem a importância de pensar no espaço público a sua volta e buscar soluções com as pessoas, e não para as pessoas. Para Renata, essa é uma tendência no meio corporativo. “É um legado de melhoria com impacto direto na cidade. Vale muito mais do que um evento super caro que todo mundo vai, enche a cara e depois nunca mais toca no assunto.”
Concretizar uma intervenção urbana pode parecer um final feliz, mas o real sucesso de um projeto só pode ser medido a partir do impacto que aquelas transformações têm no uso do espaço público. Por isso, avaliar os resultados é uma tarefa difícil, por ser em muitos aspectos intangível. “Como medir o quanto uma pessoa se sente segura em um espaço? Ou que ela gostou porque agora é amiga de outros vizinhos?”, problematiza Renata. Um dos desafios para o Acupuntura Urbana é desenvolver métricas para esse tipo de impacto.
Parte dessa avaliação pode ser feita a partir da observação da nova dinâmica e agenda cultural que a própria comunidade passa a criar no espaço. Em Perus, por exemplo, um centro de juventude local passou a organizar atividades na Praça do Samba após a intervenção. O coletivo também pintou uma faixa de pedestres, que foi depois repintada pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) – indício de que o governo legitimou a ação – e os carros passaram a parar em um ponto em que a travessia para a praça era difícil.
Mensurar resultados é essencial para o próximo passo do projeto, de influenciar políticas públicas para ganhar escala na cidade. “O governo precisa autorizar e apoiar. Ele tem infraestrutura, uma equipe técnica que pode ajudar muito e bastante conhecimento”, diz Renata. Para o coletivo, o modelo ideal de atuação é estabelecer uma “PPPP”: parceria público-privada-população. Dessa forma, pessoas, empresas e poder público podem agir juntos e se sentir corresponsáveis pelo espaço que ocupam – passando a cuidar melhor dele.
Via Formiga.Me por