Como o novo aparato tecnológico impulsiona o ecossistema econômico fundamentado nas noções de colaboração e de compartilhamento.
Foi o típico caso de mirar o que via e acertar o que não tinha como ter visto. Em 1962, quando o filósofo canadense Marshall McLuhan cunhou o termo “aldeia global” para descrever o sentimento de que a comunicação de massas estava tornando o mundo menor, não havia como antecipar que a revolução digital abalaria o mundo em ondas sucessivas pelas décadas seguintes. Tampouco o quanto isso desdobraria o conceito que descreveu no clássico A Galáxia de Gutenberg.
A popularização da internet a partir dos anos 1990 subverteu absolutamente tudo. Onde só havia sistemas centralizados e hierárquicos nos quais os fluxos partiam necessariamente de um único ator até chegar a vários milhões de usuários/consumidores começaram a proliferar sistemas não lineares em que qualquer pessoa poderia produzir e distribuir o que quer que fosse.
É nessa emergência da chamada web 2.0 [1] que o embaixador da OuiShare [2] no Brasil, Tomás de Lara, identifica um dos pontos de partida de uma nova forma de pensar a economia pautada pela colaboração, e não pela competição e o acúmulo desmedidos. “Quando o usuário vira o gerador do conteúdo, ele deixa de ser o consumidor e passa a ser o protagonista”, afirma, apontando a Wikipédia – projeto lançado em 2001 – como o grande exemplo de criação colaborativa. “Ela tem esse aspecto da multidão fazendo algo junto”, diz o entrevistado.
[1] O termo popularizou-se a partir de 2004 para descrever a onda da internet em que iniciativas voltadas para o user generated content ganharam proeminência
[2] Rede internacional de origem francesa dedicada ao tema da economia colaborativa. Fundada em 2012, sua face mais visível é o OuiShare Fest
Não quer dizer que o tiro de largada tenha sido dado só depois dos anos 2000. O Napster [3] e o movimento do software livre [4] foram precedentes importantes ao popularizarem a noção de que o público podia gerar abundância. “O software livre mostrou que dava para desenvolver produtos complexos de forma colaborativa”, aponta Cezar Taurion, que atuou por 12 anos como diretor de novas tecnologias na IBM antes de fundar a Litteris Consulting.
[3] Lançado em 1999, foi a pioneiro entre as redes de compartilhamento de arquivos no modelo P2P. Fechou em 2001 em decorrência de um processo movido pela indústria fonográfica
[4] Filosofia de desenvolvimento de softwares que permite a qualquer usuário o acesso e a possibilidade de modificar os códigos-fonte dos programas
Em meio à imensidão de inovações incríveis que a internet tornou possível, talvez nenhuma seja tão disruptiva quanto ela mesma. Segundo Max Nolan Shen, que se autoidentifica como um cultural hacker, da consultoria Dervish, esse foi o primeiro contato real do público em geral com o conceito das redes abertas e distribuídas que, aos poucos, está se espalhando para outras áreas. “Isso tudo está influenciando a sociedade, que está ficando mais aberta e transparente. Sistemas centralizados estão em crise, sejam eles os governos, as religiões, sejam as empresas”, analisa.
Revolução
Mas a internet pode nem ser mais o fator dinâmico no processo que estamos vivendo agora. Talvez não seja coincidência o fato de as novas formas de economia terem ganhado tração só depois que o bom e velho computador pessoal começou a ceder espaço para as tecnologias móveis. Essa é a opinião de um dos pioneiros do Vale do Silício e fundador do Burning Man (quadro abaixo e Retrato “Festival de sonhos“), Michael Mikel. “A internet permitiu a troca de informações, mas isso não é mais novidade. O que há de novo nesse cenário são os aparelhos e os aplicativos móveis que, por sua simplicidade de uso, são fundamentais na propagação dessas ideias”, opina.
O que alimenta esse processo ainda é a expansão quase miraculosa do poder de fogo dos microprocessadores que – ao fim e ao cabo – nos permite fazer cada vez mais coisas com cada vez menos equipamento. “Em média, a capacidade computacional dobra a cada dois anos. Um smartphone de hoje tem a mesma capacidade do data center que a Nasa tinha quando levou o homem à Lua”, destaca Taurion.
Junte nisso novidades como a computação em nuvem [5] e a geolocalização [6] e estão dadas as condições para que muita coisa interessante aconteça. E o que está emergindo desse caldo extrapola, em muito, os limites do mundo virtual. A geração que cresceu acostumada a socializar seus arquivos de música em massa começa a pensar que já está na hora de os átomos entrarem também na dança. “A internet foi o primeiro boom. Agora estamos descobrindo o que dá para fazer no mundo real indo além da internet”, adianta a arquiteta e diretoria-executiva do FabLab (consulte Glossário) Brasil Network e fundadora da consultoria We Fab, Heloisa Neves.
[5] Na computação em nuvem, um terminal pode acessar dados e recursos de outro computador por meio da internet
[6] Capacidade de identificar com precisão a posição geográfica de um aparelho como um celular ou computador
Esse aspecto mais cultural também é destacado por Mikel na hora de justificar por que razão essa transformação está acontecendo agora. “A questão não é só tecnológica, a evolução das ideias também é muito importante”, opina.
É uma mudança de paradigma que tem potencial para oferecer respostas interessantes aos – cada vez mais – evidentes limites da economia de consumo. “Hoje, nosso modelo econômico é unidirecional: você extrai a matéria-prima, processa e faz produtos que são quase descartáveis. Esse sistema está se tornando inviável”, analisa Cezar Taurion. O consultor acrescenta que o grande pulo do gato tem sido encontrar maneiras de usar essa nova camada computacional para converter produtos em serviços. “Estamos indo de uma economia do produto para outra baseada em serviços. Um produto é algo que precisa ficar sempre com você para ser usado, já um serviço é ‘compartilhável’”, completa.
Otimização
O compartilhamento veio a ser a pedra angular de uma nova geração de serviços on-line que procuram criar valor otimizando bens amplamente disponíveis. Foi esse o truque que levou start-ups como Uber [7] e Airbnb [8] a torna-se empresas bilionárias em uns poucos anos. “Há uma abundância enorme que não está sendo devidamente utilizada”, resume Max Nolan.
[7] O Uber é um serviço similar ao dos táxis, mas prestado por motoristas comuns que só precisam cadastrar-se na plataforma da empresa
[8] O Airbnb permite que indivíduos ofereçam espaços para aluguel, seja um imóvel vago, seja um quarto. Normalmente é usado para locações por curta temporada em substituição a hotéis convencionais
A verdade é que a economia do produto tolera quantidades surpreendentes de desperdício. “Um carro chega a ficar 90% do tempo parado e isso não faz sentido”, exemplifica Rafael Taube, que há dois anos fundou a Joycar, empresa de aluguel de automóveis por períodos curtos por meio de uma plataforma digital – conhecida como carsharing. “Já os nossos carros estão constantemente sendo utilizados”, arremata.
De acordo com Tomás de Lara, a intensidade de uso dos veículos no modelo carsharing chega a se multiplicar por seis. “Imagine se isso vira mainstream? A demanda por carros novos poderia cair seis vezes! É menos borracha para pneus, alumínio para lataria, aço para estrutura, vidro… é algo disruptivo”, pondera, ressaltando que a economia colaborativa “ajuda o mundo no uso eficiente de recursos materiais, financeiros e intelectuais”.
A Sampa Housing ataca outro tipo de problema: o excesso de imóveis vazios na capital paulista. “Existe uma quantidade grande de apartamentos não locados em São Paulo”, explica Alexandre Lafer Frankel, CEO da Vitacon, incorporadora que há cerca de nove meses comprou a start-up.
A proposta da Sampa Housing é fazer com que os proprietários cadastrem seus imóveis na plataforma. Estes então passam por um processo de “curadoria” – para verificar se atendem aos padrões de qualidade – e, se aprovados, são oferecidos em um sistema desenhado com simplicidade. “Alugar um imóvel é uma experiência desgastante, mas pela internet fica tudo muito mais fácil. A beleza desse modelo é que ele junta o físico e o virtual para reinventar atividades que já existem há muito tempo”, explica.
Os benefícios dessa abordagem não são apenas difusos. Há bons motivos pessoais para trocar a posse definitiva de alguns bens por sistemas que permitam acesso a eles quando necessário. “Não tem passivos como impostos, seguros e manutenção. Claro que esses custos ainda vão existir, mas serão distribuídos”, afirma Tomás de Lara.
As vantagens são tão palpáveis que, em mais ou menos um semestre, a Basf – um dos clientes corporativos da Joycar – saiu de 1 carro compartilhado para 7. “Os resultados foram além da expectativa. Eles queriam oferecer só uma solução extra de mobilidade, mas tiveram retorno financeiro”, afirma Taube. Frankel também comemora o potencial do crescimento da Sampa Housing, que já conta com mil imóveis cadastrados e planeja triplicar esse número até o fim do ano para dar conta de uma fila de espera que já chega a 2 mil pessoas.
Fator de produção
Usar a colaboração para economizar uns trocados com imóveis e carros pode ser apenas a ponta do iceberg. Há outras possibilidades. Em muitos casos, a colaboração tem sido um vetor para a geração de riqueza.
Novidade há alguns anos, os espaços de coworking [9] já são parte consolidada da paisagem, tanto que o House of Work vem se desdobrando para incluir projetos ligados à gastronomia e educação. Segundo o seu proprietário, Wolfgang Menke, embora o atrativo inicial seja o preço mais em conta em relação a ter um escritório próprio, esses espaços querem ser mais do que uma “república de empresas”. “Você traz as pessoas para compartilhar porque fica mais barato, mas acaba compartilhando ideias. Graças a esse fluxo de informações constantes e randômicas você abraça causas que nem imaginava e gera novos negócios”, avalia.
[9] Espaços compartilhados que oferecem toda a infraestrutura de um escritório para empresas ou profissionais autônomos
Radicalizando sobre esse conceito, Max Nolan está trazendo para o Brasil o hoffice, no qual profissionais que trabalham em regime home office abrem suas casas uns para os outros. Criado no fim de fevereiro, o grupo Hoffice São Paulo do Facebook já conta com 535 pessoas. “Você só precisa de um espaço agradável onde as pessoas possam trabalhar sem aperto, um bom wi-fi e generosidade de abrir sua casa. Acho que estamos no começo de um movimento que vai explodir”, diz Nolan, confiante.
E que tal se, além do escritório, desse para compartilhar uma fábrica inteira? Bem ou mal, essa é a proposta dos fab labs e dos maker spaces [10]. “Um fab lab é uma plataforma onde pessoas se encontram para materializar ideias através de máquinas de fabricação”, explica Heloisa Neves, da rede Fab Labs Brasil, que contabiliza 11 desses espaços em plena atividade “e mais um a caminho”. De acordo com ela, esses espaços acabam se tornando o ponto focal para o aparecimento de novos negócios. “O Garagem foi um dos pioneiros e funcionou mesmo como uma incubadora”, conta.
[10] Saiba mais no site
As facilidades trazidas pelas estratégias de colaboração para os empreendedores são celebradas por Cezar Taurion. “Você quebra o modelo em que era preciso ter acesso ao grande capital para conseguir uma série de coisas que, hoje, a tecnologia me permite fazer quase de graça”, comemora.
Retomando a vizinhança
Esse barateamento de processos de grande escala torna viáveis iniciativas que colocam de lado a ideia de operar como empresas convencionais e apontam para uma direção mais comunitária.
Há cerca de um ano, a estudante carioca de publicidade Camila Carvalho lançou o site Tem Açúcar?, por meio do qual é possível pedir emprestado praticamente qualquer coisa para outros usuários que morem nas redondezas. Bancado de seu próprio bolso, o sucesso do site – que já tem 40 mil cadastrados – superou as expectativas da criadora. “É um número bem maior do que a gente esperava, o que mostra como a vontade de compartilhar é grande”, informa. Hoje, a estudante está em busca de investidores para ampliar a plataforma.
A grande inovação do Tem Açúcar? foi olhar para o passado e tentar resgatar um pouco do espírito de vizinhança que se perdeu nas grandes cidades – o próprio nome do site surgiu da imagem nostálgica da vizinha que aparece para pedir uma xícara de açúcar. “Nossa meta é resgatar essas relações quebrando o gelo de bater na porta de um vizinho. Você não precisa bater em 30 portas diferentes para encontrar o que quer, mas tem de se abrir para esse contato pessoal [de receber quem vai buscar ou devolver um objeto]”, explica Camila Carvalho.
Já os empreendedores Arthur Felizzola e os irmãos Fábio e Marcelo Chaar estão tentando encontrar um caminho do meio. O primeiro deles é cocriador do Closit!, por meio do qual os usuários podem vender peças de roupa e acessórios de segunda mão. “Ele permite que peças usadas sejam recolocadas no mercado e que se crie valor nesse processo. Nossos usuários podem redistribuir o que não usam, diminuindo o consumo e aumentando o ciclo de vida dos produtos”, descreve.
É um espírito similar ao do Avisaí desenvolvido pelos irmãos Chaar. O aplicativo – que, por enquanto, só funciona na área da Grande Belém – conecta moradores e fornecedores locais. “Isso permite aos pequenos comerciantes fomentarem seus negócios”, explica Marcelo Chaar.
Para que isso dê certo é preciso que haja confiança entre os usuários. Esse é um problema que, aos poucos, a tecnologia também está ajudando a resolver por meio de mecanismos que rastreiam a reputação de cada usuário e indicam se ele é – ou não – confiável. “Quando vivíamos em tribos, você conhecia as pessoas e podia desenvolver a relação de confiança necessária ao compartilhamento de recursos”, afirma Michael Mikel.
Como o mundo mudou radicalmente de lá para cá, Mikel destaca a necessidade de encontrar outros caminhos. “Somos uma tribo muito maior agora e, com as tecnologias, podemos colaborar em escalas muito maiores que no passado”, conclui o uns dos pioneiros do Vale do Silício.
Encontro off-line
Em quase três décadas, o festival Burning Man tornou-se um propagador de ideais comunitários e de colaboração. E chegam a influenciar muitas empresas pontocom no Vale do Silício
Em 1986, um par de doidões da Califórnia – Larry Harvey e Jerry James – construiu um boneco de madeira que carregaram até uma praia ao norte de São Francisco onde, sob aplausos de alguns amigos e umas poucas dezenas de curiosos, botaram fogo na criação. Gostaram tanto do feito que resolveram fazer disso um compromisso anual. Foi desse começo improvável e espontâneo que nasceu o Burning Man, festival anual que, em 2014, reuniu quase 66 mil pessoas em Black Rock, uma região no Deserto de Nevada onde fincou raízes.
“O Burning Man é um experimento em comunidade”, resume Michael Mikel, que participa do evento desde sua terceira edição e é um dos seis membros do Conselho dos Fundadores. “Muita gente tem sua primeira experiência comunitária real quando vem ao festival”, completa (mais em Retrato “Festival de sonhos“).
O caso é que não se trata de uma festa turbinada, mas de um evento de vanguarda cuja espinha dorsal é um conjunto de 10 princípios que favorecem reflexões profundamente identificadas com o tema da economia colaborativa (veja aqui). “O que o Burning Man quer é criar uma forma alternativa de pensar, e quebrar preconcepções que temos do mundo”, diz.
Não seria nenhum exagero ver o DNA do Burning Man na forma como o Vale do Silício vem abraçando o novo paradigma da economia colaborativa. Nesses quase 30 anos, o festival se tornou o ponto de encontro não oficial da indústria de alta tecnologia. “Afetamos muitas companhias pontocom, não somente por meio dos indivíduos que as fundaram, mas também nas ideias que estão por trás delas”, confirma Mikel.
Ele mesmo é prova dessa influência. Além de incluir passagens por muitas das pioneiras do mundo hi-tech, Mikel foi o responsável pela primeira linha de produção robótica nas fábricas da Apple em 1986.
Via Fábio Rodrigues – Página 22
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